m vários países do mundo os crimes violentos perversos são punidos com pena de morte (EUA, por exemplo) ou prisão perpétua (Argentina, França, Alemanha etc.). Ambas são sanções extremadas e proibidas pela Constituição brasileira. Mas o que praticamos no Brasil hoje, frente a tais crimes, é irracional.
A crítica do ministro da Justiça de que preferiria morrer a cumprir pena nos presídios brasileiros, embora não apresente nada de novo, deveria ao menos servir de estopim para desencadear a mais revolucionária reforma do nosso falido e criminógeno sistema penitenciário, a começar pelo modelo progressivo de cumprimento da pena de prisão desenhado nas leis penais de 1984 (Código Penal e Lei da Execução Penal), como fruto de uma aposta muito arriscada do legislador.
Esse sistema progressivo, na verdade, para além de não contribuir em nada para a redução da criminalidade (em 1980 tínhamos 11,7 assassinatos para cada 100 mil pessoas, contra 27,3 em 2010), já nasceu envelhecido e descompassado porque, desde a década de 70, já se sabia pela sociologia crítica norte-americana que, nesse terreno, nada funciona (Martinson, 1974, Nothing Works). Cientificamente, portanto, já se podia prever o seu retumbante fracasso, visto que não passava de uma ficção, agravada pela desídia do Executivo que jamais o levou a sério, talvez por conhecer, bem melhor que o legislador, a realidade norte-americana e escandinava dos anos 60/70, que já demonstravam exaustivamente a absoluta impraticabilidade da ideologia da ressocialização.
A lógica dos regimes fechado, semiaberto e aberto, tal como denunciávamos em 1986, na Revista dos Tribunais, apesar do seu fundo humanista, veio para o sistema jurídico brasileiro como obra hollywoodiana, porque totalmente desconectada da realidade. Até hoje a quase totalidade das comarcas do País nunca viu uma só colônia agrícola ou industrial ou sequer uma casa do albergado, destinadas aos regimes semiaberto e aberto. Tal como nossos antepassados das cavernas, o legislador acreditou na ilusão mágica de que bastava pintar os animais nas paredes para se ter a posse deles.
A política criminal brasileira é a política pública mais irresponsável que se vê nos governos democráticos. Imaginem o quanto bizarro seria a construção de um sistema de saúde pública sem médicos, hospitais, ambulâncias e centros de saúde; um sistema educacional sem escolas e professores; um sistema de transportes sem estradas, ferrovias, aeroportos e veículos ou uma Justiça sem fóruns e juízes.
O que fizeram em 1984 foi exatamente isto: embora humanistamente, construíram uma miragem legislativa, que contemplava um sistema progressivo fundado em cadeias e presídios insuficientes, em colônias agrícolas e casas do albergado inexistentes, em pessoal qualificado para os exames criminológicos e comissões técnicas de classificação que nunca saiu do papel, em espaços físicos para atendimento mínimo dos direitos dos presos nunca observados etc.
Como se vê, trata-se de um sistema progressivo absolutamente desconectado da realidade brasileira, que além de tudo ainda permite a saída temporária dos presídios inclusive de criminosos violentos perversos, dotados de altíssima periculosidade, sem nenhum tipo de análise científica e psicossocial nem de controle efetivo (monitoramento eletrônico), o que muito vem contribuindo para o massacre sanguinário de mais de um milhão de pessoas, de 1980 até hoje (veja nosso levantamento no institutoavantebrasil.com.br).
Constitui um delírio imaginar que seja possível a ressocialização dos condenados nos infestados presídios brasileiros, que em nada se diferenciam das masmorras da Idade Média, com a única exceção agora do uso frequente do celular pelo preso. A reforma de 1984 fez uma aposta que o Executivo não cumpriu (nem nunca cumprirá). Michel Foucault, em 1975, já dizia que nos envergonhamos dessas prisões. Os muros que separam as pessoas, que tinham sido motivo de orgulho em algum tempo passado, passaram a constituir uma peste maligna, refutada por todos. Saíram dos centros e foram para as periferias (longe dos nossos olhos), saíram das capitais e se deslocaram para o interior. Ninguém quer saber de prisão perto da sua casa.
Para o Brasil foi elaborada uma legislação prisional excelente na teoria e disfuncional na prática, daí o seu inegável potencial criminógeno. O que é pregado pelo Estado de Direito não tem nada a ver com a realidade, que é puro Estado de Exceção ou de Polícia, marcado pela suspensão dos direitos e garantias fundamentais e agravado pela inércia criminosa do Executivo (tal como já denunciaram os ministros Gilmar Mendes e Peluso).
Para que algo mude no sistema prisional brasileiro faz-se necessário, antes de tudo, ter a coragem de jogar a máscara fora. O sistema prisional brasileiro se transformou num mundo de mentiras e de fantasias (além de casas do terror). A prisão deveria ser reservada somente para os criminosos violentos ou violentos perversos; e quem pratica esse tipo de crime (perverso) não deveria dela sair sem cumprir grande parcela da pena (até 80%), sempre limitada e calculada sobre a base de 30 anos. O sistema prisional brasileiro somente pode um dia ser alterado quando caírem todas as suas máscaras.
Minhas propostas que farei para a Comissão de Reforma do LEP, presidida pelo ministro Beneti: (a) só considerar como crimes hediondos os crimes violentos perversos (homicídio, estupro, latrocínio etc.); (b) aumentar, nesses crimes, o tempo de cumprimento da pena em presídio de segurança máxima (até 80% da pena); (c) fim da distinção entre primário e reincidente; (d) respeito ao máximo da pena de 30 anos; (e) o cálculo da pena em presídio de segurança máxima deve ser feito em cima dos 30 anos (não sobre o total da pena, sob pena de violação da proibição da prisão perpétua); (f) fim dos regimes penitenciários (que são mais fictícios que reais); (g) depois de cumprida parte da pena em presídio de segurança máxima vem o livramento condicional; (h) distinguir os crimes em 4 categorias: crimes violentos perversos, outros crimes violentos (não perversos), crimes não violentos e crimes imprudentes.
Primeira categoria (crimes violentos perversos): presídio de segurança máxima. Para a segunda categoria (crimes violentos não perversos): presídio de segurança máxima ou prisão domiciliar com monitoramento eletrônico pago pelo preso (em regra), conforme cada caso. Crimes não violentos e imprudentes (que hoje representam 51% dos presos): recolhimento domiciliar, internação-escola e penal alternativas (nunca colocá-los no mesmo estabelecimento penal dos criminosos violentos).
(*) Luiz Flávio Gomes, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil (também no professorlfg.com.br)
Fonte: Diretoria de Comunicação / SINSAP/MS